Estação São Bento. Foto de Anderson Santos.

Todo morador de São Paulo paga o imposto da desigualdade.

Lidando com a violência urbana entre túneis sociais.

_erinhoos
7 min readJun 17, 2022

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O primeiro livro de sociologia que eu li na minha vida, que eu tirei de uma estante de "pegue, leia e devolva", chamava-se Admirável Mundo Atual do (controverso) Cristovam Buarque. O livro, publicado em 2001, faz uma alusão óbvia ao clássico Admirável Mundo Novo do Aldous Huxley (de 1932), e defende que algumas premissas desta famosa ficção distópica já se encontravam engatilhadas no limiar do milênio, talvez revestida de uma coloração realista e conformada ao capitalismo tardio.

No romance de Huxley, o mundo social é dividido em castas organizadas em diferentes graus de civilidade e acesso a privilégios. Além disso, os indivíduos são completamente alienados, submetidos ao poder de instituições sociais, que se mantêm mediante rígidos rituais. Cristovam viu nessa narrativa o substrato alegórico perfeito para suas análises sociológicas que, escritas de forma ácida e cristalina, grudaram no meu cérebro para sempre.

Nunca devolvi o livro.

Embora eu nunca tenha relido o mesmo — na verdade peguei ele aqui ao longo da escrita pra não falar nenhuma besteira — , as ideias e imagens por ele discutidas e professadas se mantêm, mais do que nunca, no meu dia a dia de cidadão de uma São-Paulo-sem-muros pós-apocalíptica, que sente o impacto do abandono institucional e da desigualdade de renda aprofundada pelas crises política, econômica e sanitária — que se retroalimentam.

A expressão máxima desse admirável-ma-non-troppo mundo capitalista atual estaria na ideia de apartação, que consistiria na separação entre grupos sociais mediante o aprofundamento das desigualdades sociais. A apartação biológica seria um passo mais radical, rumo à ideia distópica de que um acesso tão díspar à biomedicina resultaria em uma modalidade de apartação por espécies, originando uma modalidade radical e irreversível de distanciamento — tal como a descrita no romance de Huxley.

É, neste último caso, como se as classes mais altas fossem compostas de super-humanos com menos defeitos congênitos e mais resistência a doenças. Nesse caso, a superioridade de classe seria também uma superioridade fisiológica, e as relações de dominação seriam auto-justificáveis, como o são (aparentemente) as relações de dominação entre humanos e animais.

Mas o que mais me atiçou a memória, levando-me a acionar essa teoria sociológica da catástrofe que morava até então confortável no meu subconsciente (e na minha estante), foi mesmo a minha experiência de sujeito-classe-média-vivendo-no-centrão-de-São Paulo nesta ressaca acre do ano em que todos envelhecemos (ou melhor, biênio).

Avenida São João. Foto de Anderson Menezes Da Silva.

E cá estamos. O ano é 2022. O direito à cidade foi sequestrado. Não tem mais biblioteca vinte e quatro horas. Não tem show na praça, na calçada. Quando tem, não é bem um show, é um palco de guerra civil. Não tem caminhada relaxante. Não tem direito ao próprio celular, à própria bike. Não tem voltar-à-noite-a-pé-pra-casa-se-sentindo-seguro. Não tem passo relaxado. Nada. O direito à cidade foi sequestrado.

A distância social entre pessoas que circulam no mesmo centro é tão antagonizante, que ela parece forjar cidades diferentes para grupos sociais diferentes. O impacto nos trajetos e formas-de-mover-se na cidade é a expressão desse antagonismo social tão acachapante que faz a vizinhança traçar as mais diferentes estratégias, que vão do sedentarismo voluntário ao auto-exílio (para quem pode). Mas a maior parte do contingente de viventes está, naturalmente, entre os dois polos.

Neste ponto, é impossível para mim não lembrar do conceito de túnel social do Cristovam:

Cada vez mais com maior frequência, os habitantes ricos das grandes cidades usam seus carros não apenas como um meio de transporte, mas também como um meio de separar-se dos pobres. Os carros separam os ricos dos passageiros dos ônibus, bem como dos pedintes, dos vendedores e dos esquineiros parados nos sinais de trânsito. Na apartação, os carros são menos um meio de transporte e mais um túnel social móvel, como uma cápsula, uma cortina de aço, de que os ricos fazem uso para ir de um lugar a outro sem caminhar entre os excluídos que ficam do outro lado dos vidros e da lataria, às vezes blindada. Com o tempo, esse túnel não proporcionará segurança suficiente e será necessário optar entre uma modernidade-ética que elimine a brecha social ou a construção de verdadeiros túneis ligando os condomínios e castelos modernos aos shopping centers e a outros lugares onde trabalham, vivem e se divertem os incluídos (grifo meu).

Sendo o centrão um lugar de passagem, encontro e moradia trans-classes, a metáfora precisaria de ressalvas, mas não deixa de ser elucidativa ao traduzir como pessoas de estratos sociais não-pobres traçam estratégias para evitar o encontro direto com os excluídos (como no caso das Cracolândias e seus fluxos) e com o crime e a contravenção — estes aquecidos pelo cenário de recrudescimento da ambiência Sul-Global-noventista.

Largo do Café. Foto de Anderson Menezes Da Silva.

Pois não é outra coisa senão o efeito-túnel-social que eu sinto quando pedalo para realizar minhas tarefas do dia-a-dia, ao invés de fazê-las a pé. Enquanto eu volteio os pedais e suas roldanas e correias, eu sou só um hipster casual. Mas quando ponho o pé no chão e vou, sei lá, cortar o cabelo ou almoçar, me sinto impelido a amarrar a bike em um poste, árvore ou pára-ciclo que possa ser visto periodicamente por alguma janela — o que alimenta uma película de estresse cotidiano, que finca raízes no cérebro e enfraquece a argamassa do escalpo.

Nada diferente de quando pago uma viagem privada de madrugada (Uber & outras pragas) para evitar duas quadras e uma ponte (!), em um trajeto que faria sossegadamente há um par de anos atrás (talvez já contando com alguma sorte). O que está implicado nesse gesto de pegar o smartphone e solicitar uma corrida (inflacionada e demorada) de até dois quilômetros única e simplesmente para chegar em paz em casa?

Pagar uma taxa, que é uma taxa da existência decente, uma taxa capciosa que te cobram se você quiser ter certeza que sua dignidade não vai ser violada até o caminho de volta para casa.

Ou talvez nem tanto isso, mas com isso amarrado à força na psique. E é aí que, além do túnel social, eu lembro de um conceito importantíssimo do Cristovam: o de imposto da desigualdade.

A riqueza montada sobre a desigualdade carrega um paradoxo: quanto mais riqueza acumulam os ricos no meio da pobreza, mais perdem em vazamentos nem sempre perceptíveis provocados pela desigualdade. Nas sociedades desiguais, os ricos são obrigados a pagar um invisível imposto natural decorrente da desigualdade, sob diversas formas: vigilância privada, resgate a sequestros relâmpagos, seguros elevados, taxas pagas na rua a pedintes, compra de produtos desnecessários, vendidos como semimendigacidade, (…) perda de eficiência, dificuldade de comunicar-se nas ruas. É um imposto da desigualdade, pago para manter o status quo, a um custo maior do que se investissem corretamente na erradicação da pobreza (grifos meus).

Nesse sentido, a manutenção de um veículo, ou as corridas automotivas privadas noturnas, ou até a troca das sapatas de freio da bicicleta, são tragadas por esse imposto implícito nessas condições de deslocamento citadino que expressam as formas adotadas pela classe média para evitar o confronto direto entre populações, o que retroalimenta a distância social com relação aos pobres — e alpinistas-sociais-contraventores.

Vale do Anhangabaú. Foto de Anderson Menezes Da Silva.

O lugar social de sentar-se em frente ao PC e carpir essas palavras — o direito à cidade foi sequestrado — , contudo, ainda é um lugar de mobilização e visibilidade. Digo isso porque só algo que já pertenceu a alguém é passível de ser sequestrado, e populações vulneráveis e em graus mais drásticos de subalternidade em São Paulo já experienciavam muito tempo antes, na crueza de um cotidiano árido, níveis muito precários de vínculo com o território central. Como comenta Jup do Bairro em uma entrevista:

[M]uita gente fala sobre “estarmos no fim do tempo”, “o apocalipse chegou” e não sei o quê e, sinceramente, eu acho que o apocalipse já aconteceu e a gente já está andando sobre os escombros há muito tempo. E uma semiótica que eu gosto de levantar também, inclusive sobre a pandemia, é que o mundo está vivendo hoje o que pessoas trans e pessoas pretas já passam há muito tempo, que é o medo de sair de casa e morrer (grifos meus).

Em todos os casos, para todas/os (aspiras a) cidadãs/ãos, o cenário que se impõe como atual é o de guerra. Uma guerra cuja covardia é endêmica, capilarizada, democrática e — obviamente — assimétrica, impelida pelo vandalismo institucional.

Uma guerra fria — às vezes nem tanto — chamada centrão de São Paulo em 2022. Esse não-tão-Admirável Mundo nunca pareceu, de fato, tão Atual.

Agradecimento especial a Fernando Alves, Marcelo Perilo e Caio Jardim-Sousa pelos insights encarnados na escrita.

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas