_um milhão de jeitos de se viver uma cidade

_erinhoos
7 min readJul 6, 2017
Ilustração de Joaquín Torres Garcia, pintor e desenhista uruguaio, 1943.

Enquanto acompanhava uma grande amiga em seu trabalho de campo no fluxo da Cracolândia em 2015, percebi com muita clareza um fato que até então parecia meio obtuso nos textos de antropologia urbana: o espaço não é o mesmo para todos. Essa percepção se tornava elucidativa conforme nos movíamos através do fluxo: havia uma certa preocupação em não esbarrar, pisar em poças, e as relações que estabelecíamos com os corpos-em-fluxo contrastava com os esbarrões e o ritmo trôpego dos passantes. O pertencimento ao fluxo e à errante comunidade e o consumo da droga criava um espaço cujas convenções de uso eram certamente díspares da forma como nossos movimentos, meus e de minha amiga, percebiam e criavam o espaço. Sabemos nos dias de hoje que a Cracolândia é criada e recriada com as mais diferentes motivações mesmo com alguns de seus mais relevantes empreendedores simbólicos morando em mansões afastadas ou trabalhando em redações de periódicos em prédios onde um usuário jamais sonharia adentrar.

São Paulo é uma cidade esmagadora, e tudo sempre parece novo quando você mora em uma metrópole: sempre tem gente nova, centros culturais abrindo e fechando e rolês de todos os tipos, que se reciclam de mês para mês. Morando próximo de uma estação de metrô, de repente você descobre do jeito mais aleatório que existe um vizinho que poderia ter sido seu amigo há mais de uma década. Ou namorado. Ao mesmo tempo é impressionante que a contiguidade de casas e corpos às vezes seja estranhamente traduzida por uma “distância espiritual” entre moradores vizinhos — para fazer menção ao clássico texto As grandes cidades e a vida do espírito do sociólogo alemão Georg Simmel. Em 1903 ele escrevia:

A reserva e indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos maiores, nunca foram sentidas tão fortemente, no que diz respeito ao seu resultado para a independência do indivíduo, do que na densa multidão da cidade grande, porque a estreiteza e proximidade corporal tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual. Decerto é apenas o reverso dessa liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande; pois aqui, como sempre, não é de modo algum necessário que a liberdade do ser humano se reflita em sua vida sentimental como um sentir-se bem.

Eu detesto meus vizinhos, e eles me detestam, e isso é muito okay, porque meu vínculo com a cidade não está marcado exclusivamente pelas relações de vizinhança — bem longe disso, aliás: a minha experiência de cidade está relacionada ao trânsito constante entre bairros, sobretudo dentro do perímetro do centro expandido. Ao longo dos anos fui elaborando minha própria cidade a partir das afinidades que fui traçando com redes, estilos de vida e lugares, de forma que a maneira como vivo e me movimento em São Paulo certamente reflete minha trajetória pessoal. A escolha pelos lugares que frequento e em que estou não é gratuita. Antes, eles fazem parte de um roteiro particular, compartilhado por grupos de pessoas que possuem maior ou menor afinidade com o meu estilo de vida.

Metade dos meus amigos não nasceram nem cresceram na capital paulista, e é lindo ver como a escolha pela cidade — seja ela motivada pelo que for — é celebrada por tudo aquilo que o cosmopolitismo pode oferecer de melhor. Contudo, para uma alma paulistana — como esta — , é possível sentir até uma espécie de enfado conforme você vai fazendo sua cidade, pois ela pode ir diminuindo gradativamente. Dependendo do seu estilo de vida, a metrópole se torna uma cidadela — senão feudo — , onde tudo é previsível e você sabe precisamente quem e o que vai encontrar. Se eu sair pela rua Augusta em uma noite ordinária, por exemplo, eu inevitavelmente vou cumprimentar algum amigo ou conhecido em algum momento.

Os diferentes jeitos de viver a cidade criam cidades diferentes em um mesmo espaço.

Esse espaço vai sendo aberto e fechado, transmudado ou consolidado de acordo com a incidência obstinada de atribuição de sentido sobre o mesmo — fato ainda mais flagrante quando falamos sobre planos de legibilidade coletivos, as diferentes cartografias. Atualmente me sinto sufocado por sentir que minhas condições de circulação para fora do estado de São Paulo estão muito aquém do que eu gostaria, sobretudo tendo em vista o contexto de crise econômica e política por que passa o país. Fui descobrindo, contudo, ao longo dos últimos anos, que existem muitas cidades aqui dentro da metrópole — o que é levemente consolador. Desse modo, viver São Paulo não tem sido para mim algo como uma tarefa única e fechada, mas sempre plural e aberta. Exemplos!

A cidade que vivi como uspiano. No início desta década, ao longo dos meus primeiros anos de graduação em Ciências Sociais, era possível esbarrar em diversos colegas da minha mesma classe (!!!!) às segundas e quartas no cinema Belas Artes, quando os ingressos ainda custavam quatro reais. O Corujão do Belas era uma efeméride, à aparência, forma e semelhança de um Quinta I Breja; dormir no terceiro filme era tão certo quanto o fato de que em alguns momentos você fatalmente cruzaria com conhecidos ecanos e fflchentos. Essa cidade feita de calouros de ciências humanas era insuportavelmente pequena, e parte do meu dia se passava dentro de livros (lugares muito mais afáveis do que os ônibus lotados que existiam ao redor).

A cidade que vivi e vivo como gay. Ao longo dos anos fui descobrindo outra cidade, feita de points, estabelecimentos “GLS” e áreas gay friendly. Existe uma espécie muito peculiar de “capital social gay” que permite com que você perceba e circule pelo centrão sob um ponto de vista completamente outro. Os vínculos que fui produzindo com redes e espaços “gays” ao longo de anos foram responsáveis pela edificação de uma outra cidade. Meus colegas héteros dos tempos de colégio certamente desconhecem essa cidade, ainda que eventualmente circulem através de seus logradouros. É uma cidade que apenas os entendidos entendem.

O “flanêur sexual”. A importância desse “capital social gay” sobre como você elabora a cidade se torna muito evidente quando você pensa no sexo casual. Não sei quantas vezes na minha vida eu cruzei — a pé, de bike e de ônibus — a Martins Fontes, fazendo trajetos entre a rua Augusta e o cruzamento da São Luís e Consolação com os viadutos 9 de Julho e Major Quedinho e a Xavier de Toledo. Já cruzei essa rua em manifestações, blocos de carnaval ou mesmo desinteressadamente, para acessar a Avanhandava ou a praça Roosevelt. Ainda assim, me surpreendi grandemente quando, de dentro de um quarto de hotel, pude enxergar do alto esse curto logradouro que até então parecia para mim absolutamente conhecido e banal.

O mesmo sexo casual me levou diversas vezes à avenida 9 de Julho e imediações, de forma que a Bela Vista foi se constituindo no meu mapa mental da cidade a partir de um mosaico de experiências sexuais.

Minha cidade privilegiada. Ser um jovem homem branco escolarizado de classe média é inegavelmente um fato que confere acesso privilegiado a diferentes cidades-na-cidade. Este fato permite com que eu possa adentrar diferentes mundos com mais facilidade que muita gente, uma espécie de “passe livre social” urbano. Obviamente, aspectos financeiros, estilísticos, corporais, políticos e etários são fundamentais no processo de limitação e construção de fronteiras dos espaços onde posso e quero estar.

A depender do jeito como você pensa, da forma como você se veste, das músicas que você ouve, dos corpos que você deseja, a cidade muta. Assim, se eu não sei me portar numa biqueira, por um lado, ou se uso boné de aba reta em uma loja de importados ou numa exposição de arte, por outro, passo a me tornar objeto de desconfiado interesse. Existem muitas cidades aqui. Algumas delas estão para ser descobertas, e eu posso fazê-lo. Outras são feitas para poucos, como a pequena cidade-estado Higienópolis, e seus portões sociais são pesados demais para mim.

O espaço não é o mesmo para todos. Fico pensando, se existem tantas São Paulos para uma só pessoa, que dizer para a infinidade de corpos que atravessam e constroem cotidianamente a metrópole. E nas cidades que são negadas àqueles e àquelas que possuem grande limitação de capital material, cultural e social. Contudo, os imponderáveis da (falta de) mobilidade e do ace$$o ao “direito à cidade” não produzem ou resultam em apenas perda e carência, mas sim na constante re-edificação do espaço. Não existe aí um “espaço da falta”, mas simplesmente cidades alternativas. A construção dessa exuberante “cidade gay” que eu vivo, por exemplo, se deu às expensas de um alijamento histórico do espaço público em relação à população de homens que se relacionam afetivamente com pessoas do mesmo sexo. (Nós gays construímos nossa própria cidade, e continuamos a fazê-lo.)

Seguimos criando e recriando, cada qual à sua maneira, São Paulo. Os saberes sobre a cidade fluem em franca concorrência, o que torna a vida na metrópole deveras interessante. Seguimos também resistindo aos projetos de “cidade linda”, ao acinzentado sufoco político e às vicissitudes da imobilidade econômica. Resistimos a um modelo unívoco de cidade, errando no e pelo espaço. Insistimos em fazer erigir sobre os olhos e corações babilônias alternativas inteiras. Não poderia ser diferente pois, como diria Georg Simmel há mais de um século atrás, “a cidade grande sugere [um]a pulsão rumo à existência pessoal a mais individual”. Isto é, porque cria a multidão impessoal, a cidade obriga seus citadinos a produzirem para si e para os outros uma “imagem inequívoca da personalidade”. Para o bem, e para o mal.

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas