É possível um antropólogo pagar boletos no Brasil de 2023?

Ou 《Existe vida após a bolsa?》

_erinhoos
11 min readDec 1, 2023

Fala realizada na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2022. Vídeo com registro da fala ao final.

Mesa 《Antropologia Além da Academia》 das Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2022 do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (UNICAMP) contou também com presença de Hanna Limulja e Marina Novo. e mediação de Lis Blanco.

Boa noite a todas, todes e todos.

Essa fala se chama: É possível um antropólogo pagar boletos no Brasil de 2022? Ou: existe vida após bolsa?

Em 2013 eu participei das terceiras Jornadas John Monteiro de Antropologia Social como ouvinte. Eu era o único estudante de graduação, no caso em Ciências Sociais, que tinha vindo de fora participar do congresso como ouvinte e participei de praticamente todas as mesas com muito entusiasmo e muito maravilhado com o nível e teor das discussões, e ao cabo desses dias tinha decidido que eu ia estudar na UNICAMP no meu mestrado. Entrei na UNICAMP em 2015, tive o privilégio de ser orientado pela Professora Isadora Lins França. Aliás, posso estar enganado, mas fui um dos seus primeiros orientandos a defender aqui. E até cheguei a apresentar um trabalho nas Jornadas, eu diria de 2016, sobre banheirão, um tema que havia se tornado lateral na minha pesquisa de mestrado.

Defendi em 2017 uma dissertação chamada 《Um grito chamado silêncio: Uma errância etnográfica da pegação à produção social dos parques Ibirapuera》, sobre a construção social do parque Ibirapuera como mais ou menos relacionado ao discurso da diversidade sexual e de gênero. No ano seguinte entrei no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP e até hoje estou lá. Minha pesquisa atual [Nota: atualmente defendida] versa sobre a relação entre a circulação de bens e dinheiro, produção de corporalidades e a produção social do trabalho a partir de uma etnografia do programa e de seus garotos em São Paulo. Mas hoje eu não vou falar da minha pesquisa, vou falar sobre a minha caminhada de pesquisador acadêmico para pesquisador voltado para a inovação e tecnologia. Atualmente eu sou UX Researcher (ou pesquisador de experiência de usuário) no Zé Delivery, que é uma venture da Ambev, do grupo AbInBev, uma multinacional voltada para produção e varejo de bebidas, especialmente alcoólicas. O Zé Delivery é o maior delivery de bebidas do mundo.

Existe um, e apenas um elo norteador que propiciou a união entre meu investimento de uma década na formação em instituições de ponta e meu ingresso como pesquisador no mundo corporativo: chama-se ausência de bolsa. Posso estar enganado, mas não são todos os jovens do mundo que entram em Ciências Sociais e fazem pós-graduação em Antropologia Social que sonham em um dia trabalhar em um universo mais explicitamente ligado à cadeia produtiva e à indústria. Eu, por exemplo, entrei em Ciências Sociais porque tinha muito interesse em entender a sociedade de classes. Eu li o Manifesto quando era adolescente, e 1984 e Admirável Mundo Novo e Laranja Mecânica e Revolução dos Bichos etc. No primeiro ano de graduação eu me apaixonei pelos estudos de gênero e sexualidade e pela teoria queer, justamente na saudosa edição do ENUDS (o extindo Encontro Nacional Universitário sobre Diversidade Sexual) que rolou nesta universidade em 2010.

Antropólogos e antropólogas não estão mais ou menos, por definição, alheios à cadeia produtiva. Hoje (e pouco se fala disso) existe um exército de reserva de mão de obra de profissionais mestres e doutores em Antropologia, altamente qualificados, mas completamente desorientados com relação à questão da empregabilidade. Para vários e várias desses antropólogos e antropólogas, a resposta da pergunta 《existe vida após a bolsa da FAPESP?》 normalmente vem tarde demais.

Hoje vou apresentar o que eu convencionalmente venho chamando de antropologia corporativa. Trata-se de um universo frequentemente visto como aterrorizante que a academia não vem buscando compreender. Pois eu digo, não em tom de vaticínio, mas de resignação, que o mundo corporativo vai ser o lar de uma geração inteira de pós-graduandos, até o incentivo à pesquisa e a expansão da universidade voltarem a se consolidar como um projeto coeso e profícuo. Tem que existir vida após a tese que não seja dar aula de inglês, revisar apostilas e transcrever entrevistas; é necessário que sejamos valorizadas e valorizados pelo núcleo duro da nossa formação como cientistas sociais e antropólogos e antropólogas que somos.

A antropologia é a primeira ciência dentre as Sociais a celebrar a transdisciplinaridade. Contudo, a sua tradição de aliança à luta contra as opressões e o alto senso ético e moral que são típicos do métier podem deixar a profissional insegura quanto aos princípios e valores que estão embutidos na sua prática em âmbito corporativo. Esse é um aspecto que está no cerne da ciência: 《ó, antropologia, para que serves?》, e quando e em que condições sua magia é autorizada? A busca por “valor” no trabalho antropológico não é uma obsessão exclusiva do campo de business, mas um imponderável incrustado na história e autocrítica da disciplina. Ainda assim, impera, nas rodas acadêmicas por onde passei, um sectarismo epistemológico seletivo, um verdadeiro pânico sectário que se institui onde quer que o mercado profissional corporativo se ofereça como uma alternativa.

Bom, vamos lá. Em 2018, ano do meu ingresso no PPGAS-USP eu trabalhei em duas frentes: trainee da Kimberly-Clark e facilitador do projeto Rolê Antropológico. O Rolê Antropológico, idealizado por mim e Marcelo Perilo, doutor em antropologia egresso desta instituição, foi uma forma primeira de empreender um uso da antropologia fora da universidade, democratizando o desadestramento do olhar e as metodologias etnográficas públicos mais leigos. O Rolê está documentado no Medium, quem quiser saber mais sobre pode googlar. Além disso, trabalhei por anos não pandêmicos como anfitrião de experiências do AirBnB, e orientador socioeducativo na Fundação CASA via SENAC e no Instituto SerMais. Em todos esses trabalhos agenciei habilidades da minha formação como antropólogo e cientista social, mesmo que não representam o core da minha formação, nem a especialidade da minha linha de pesquisa.

Nesses últimos anos, além de toda sorte de freela abjeto, adentrei no mundo corporativo em duas interfaces, primeiro como Trainee na Kimberly-Clark como pesquisador da área de Research & Engineering ou Pesquisa & Desenvolvimento. Depois como UX Researcher, isto é, Pesquisador de Experiência de Usuário, primeiro na Sensorama Design, uma consultoria da área, depois na empresa em que trabalho atualmente, o Zé Delivery que, como já dito, é um aplicativo de entrega de bebidas, o maior do mundo, que por sua vez é um braço de inovação da Ambev, do grupo AbInBev.

A Sensorama Design, aliás, na época em que eu entrei, contava com seis antropólogos e antropólogas. Inclusive antropólogas que passaram por esta casa, como a Lilyth Esther e a Íris do Carmo, colegas do Pagu e amigas. Meu chefe atual, Rafael Soldan, é cientista social, e montou um rebanho transdisciplinar de pessoas pesquisadoras absolutamente excelente, e peço licença para cumprimentar meus colegas, Silvia Nogueira, Felipe Rabesquine, Felipe Rodrigues e Germano Lisboa.

Voltando ao que importa: eu vejo principalmente quatro interfaces possíveis no mundo corporativo.

A primeira diz respeito ao campo da Diversidade & Inclusão, ou D&I. Esta é a área relacionada à contratação, retenção e desenvolvimento de talentos minoritários dentro do mundo corporativo. Além disso, ela se ocupa de instituir uma cultura corporativa saudável, com referenciais de acolhimento para pessoas pretas e negras, mulheres, LGBTQIAP+ e PCDs. Eu entendo que essa é uma área de interface para antropólogos porque estes normalmente são versados em decolonialidade, pós-colonialismo, estudos feministas e gays e lésbicos, teoria queer etc. etc. Contudo, para a profissional que for se aventurar nessa área, é necessário entender todo o ecossistema corporativo, falar o corporativês e ter habilidades em desenvolvimento de projetos, entendendo o impacto de uma cultura de diversidade, sabendo defender pautas para o alto comissariado e manejar métricas.

As outras três interfaces da antropologia corporativa envolvem pesquisa. Quando eu falo pesquisa não estou me referindo ao trabalho de campo eternamente exploratório ao qual estamos habituados nos nossos projetos, mas a pesquisas transdisciplinares que envolvem não apenas entrevistas e trabalho de campo, mas também métodos quantitativos, habilidades de facilitação, soft skills de oratória e storytelling e compreensão da práxis da disciplina específica, seja ela Marketing ou UX (user experience).

A segunda interface, nesse sentido, seria a chamada Consumer Insights, que normalmente está abrigada na área do Marketing. Aqui o analista de insights vai realizar pesquisas para fundamentar o impacto em consumidores; pesquisar a população impactada para entendê-la e, assim, elaborar campanhas ou medir o impacto de determinadas ações ou estratégias em curso ou já realizadas.

As duas últimas interfaces estão ligadas ao campo da inovação, isto é, tudo aquilo que envolve a emergência de tecnologias competitivas. Neste campo, as habilidades de uma pessoa pesquisadora estão voltadas para uma visão prática do uso da pesquisa, que é orientada por uma estratégia de negócio.

Nem o design do smartphone que você está usando, nem uma feature ou algum botão em um aplicativo dentro desse smartphone, nem a nota fiscal do Starbucks que vem com a senha do wi-fi para você conectar o seu smartphone, nada disso existe sem inovação e, portanto, nada disso existe sem levar em consideração a percepção de usuários e usuárias.

A terceira interface seria a de Pesquisa & Desenvolvimento, P&D; que é a pesquisa dentro da área da indústria de produção industrial. Foi isso que eu fiz na Kimberly-Clark.

A última interface está relacionada ao desenho de processos, serviços e experiências, ou seja: Service e UX Design. UX é a arte & a ciência que se ocupa de criar experiências incríveis e não abrasivas em processos digitais. É nessa área que eu trabalho. Meu dia a dia implica no desenvolvimento de protocolos de pesquisa dentro da minha empresa (o que se convencionou chamar Research Ops, ou Operations) e também atender aos interesses de determinadas áreas dentro das empresas, representadas por stakeholders, pessoas que têm uma visão de negócio sobre alguma dimensão do produto digital. Nesse sentido, trabalho orientando projetos e também protagonizando a condução de pesquisas em um framework de processos consagrado na inovação chamado Duplo Diamante, muito relacionado ao campo (hoje paradigmático) do chamado Design Thinking. As habilidades de pesquisa normalmente se concentram na etapa deste framework ligada à descoberta, exploração e definição. Realizamos um briefing com objetivos e hipóteses refinadas após o alinhamento com stakeholders e, a partir daí, com os instrumentos que temos, criamos um roadmap (uma forma de cronograma) de pesquisa com as metodologias que julgamos mais pertinentes para endereçar aqueles objetivos e hipóteses.

Queria até poder falar mais do meu dia a dia, de como é o meu escopo dentro do Zé Delivery e que ferramentas usamos, mas vou focar em alguns pontos para não me delongar muito. O primeiro é: o que é propriamente antropológico no meu trabalho?

Para responder isso, é preciso separar o que é antropologia para mim e o que é antropologia no mundo da inovação. Antropologia para mim é a produção de conhecimento preciso, situado e eticamente construído. Preciso, situado e responsável; nada de novo sob o Sol, né? Para a inovação a antropologia é a etnografia são fontes de inspiração e recursos para entender e interpretar aspectos atitudinais, culturais e socioeconômicos de um dado usuário final de um produto digital.

Agora, o que a minha formação contribuiu para meu trabalho como UX Researcher? (1) Domínio de manejo de metodologias quantitativas e qualitativas, (2) imaginação intelectual para interpretar, (3) traquejo em campo e a famigerada empatia, isto é, a capacidade de falar com pessoas as mais diversas, correndo com os balineses quando a polícia colonial chega na rinha de galos, para usar a consagrada metáfora. Essa habilidade é rara quando falamos das bolhas socioculturais em que consistem os escritórios médios de product design. (O Zé, se me permitem, é exceção, tá?, uma referência muito promissora de diversidade no mundo corporativo.) (4) Também nosso treinamento de sistematização de resultados de pesquisa, nas falas, artigos, relatórios e documentos que acompanham nossa trajetória.

Aqui eu sugeriria ler os artigos 《Por que toda equipe de software precisa de um antropólogo》 e 《Etnografia = Melhor Design》, de Charles Pearson, que estão traduzidos na minha página do Medium, e seguir e consumir o conteúdo de gente muito sensacional que trabalha com antropologia voltada para inovação: William Corbo, Carol Zatorre, Caio Jardim, Michel Alcoforado e Hilaine Yaccoup. William Corbo, Alcoforado e Hilaine, aliás, são todos, salvo engano, egressos de uma profícua escola de antropologia do consumo que atualmente está consolidada na Universidade Federal Fluminense.

Segundo ponto: como fazer para ser um antropólogo e entrar na área de inovação?

Aprender a se posicionar no mercado, fazer cursos e bootcamps, criar um portfólio de cases que, eu garanto e juro pra vocês, é muito, mas muito mais simples do que escrever uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado — e é uma vantagem competitiva -, e algo que nós antropólogos e antropólogas somos treinadas desde a primeira aula de Antropologia I: estar disposto a aprender a falar novas línguas; no caso a língua do corporativês e a língua da disciplina de UX.

Terceiro ponto: existem implicações morais e éticas ligadas ao meu trabalho?

Sim, como em qualquer trabalho. Eu pelo menos confio que tenho referenciais morais e éticos que me norteiam, que contribuem para que o impacto do meu trabalho seja o mais responsável possível. E se eu não ocupar este espaço, outra pessoa que não necessariamente tem os mesmos referenciais, vai fazê-lo?

Quarto ponto: como é a carreira em produto digital?

Boa, promissora e gratificante. Você ganha efetivamente de forma muito mais adequada e proporcional ao teu esforço laboral.

Quinto e último ponto: o que a universidade pode fazer com relação a essa tendência disruptiva dentro da disciplina antropológica?

Ó, academia, não seja mesquinha com suas metodologias e abordagens, muito pelo contrário, invista em ser proprietária da visão sobre a vida social, política e cultural, porque isso pode ser definidor do futuro da instituição. Sou contra o corporativismo, mas mais que isso, sou contra o cenário de vulnerabilidade e instabilidade econômicas a que tanta gente genial de trinta anos é arremessada depois das defesas.

Um apelo ao professorado: proteja seu alunado. Ser doutorando é fator de risco para o desenvolvimento de questões de saúde mental. Em 2018 o El País publicou um artigo chamado 《O doutorado é prejudicial à saúde mental》, comentando pesquisas internacionais sobre suicídio e depressão entre pós-graduandos. Não preciso mencionar todo aquele debate duro que teve palco na Revista piauí com a publicação daquela constrangedora coluna “Parece revolução, mas é só neoliberalismo” em 2021, que expôs o gigantesco abismo de visões sobre a universidade entre docentes e discentes.

Para os pós-graduandos e graduandos eu só digo o seguinte: façam aquilo que lhes apetecer, mas considerem incluir no radar outras possibilidades de carreira.

Trabalhar com produtos digitais não é o fracasso individual de um projeto intelectual ou político — muito pelo contrário, é uma forma de pleitear uma dignidade sequestrada. Se existe um fracasso, é o fracasso de um projeto de nação como um todo, que é incapaz de garantir ela sozinha um destino honroso para a classe dos seus e suas jovens intelectuais.

Mais uma vez queria agradecer à organização das Jornadas, à Luísa, cumprimentar as minhas parceiras de mesa, a debatedora, e também o público presencial e online. Esta mesa vai pro meu Lattes, mas também vai pro meu LinkedIn. Aliás, eu não fui convidado pela Luísa pelo meu Lattes; eu fui convidado pela Luísa por causa do LinkedIn.

Aliás, me adicionem no LinkedIn e acompanhem também o Employer Branding do Zé, @jeitozedeser no Instagram. E também o Kenoby do Zé, que é onde divulgamos as vagas.

Enfim, um antropólogo feliz no Brasil de 2022 é um antropólogo com salário. Obrigado.

Agradecimento especial à Luísa Registro Fonseca pelo convite e ao Marcelo Perilo pelas sugestões.

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas