Registro visual de “Sagração”, da Companhia de Dança Deborah Colker, residente neste mês no Teatro Santander, em um bairro empresarial de São Paulo. Fonte.

“Sagração”, de Deborah Colker, mira no neo-primitivismo e acerta no neocolonialismo

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A Companhia de Dança Deborah Colker, responsável por performances de beleza absolutas como “Cão Sem Plumas”, “Cura” e “Tatyana”, apresenta agora a sua releitura da peça “A Sagração da Primavera”, de 1913, balé icônico e paradigmático na arte contemporânea, composto por Igor Stravinsky e coreografado por Nijinski, do Balé Russo de Diaghilev.

O balé original, aliás, foi vaiadíssimo no dia da sua estreia, por conta das suas inovações musicais e do bailado um tanto quanto difíceis de serem engolidos pela elite cultural da época. Stravinsky, junto com o estilista Nicholas Roerich, conceberam, na trama do balé, uma Rússia folclórica e pagã fantasiosa, e a narrativa principal girava em torno da escolha de uma oferenda humana, cuja missão derradeira seria a de dançar até a morte para aplacar o deus da Primavera.

Colker, em um empreendimento a(nti)temporal, buscou atualizar e “abrasileirar” a peça (hoje canônica), juntando elementos indígenas ameríndios e africanos, muito bambu, batuque “tribal” (culminando no samba, claro) e caça, numa produção estereotipada de um suposto “nativo universal” originário e tupiniquim.

Lamento: nem Stravinsky nem ninguém pediu por isso.

Vale lembrar que “A Sagração da Primavera” foi concebida propositadamente como um pastiche escandaloso para endereçar as críticas que as vanguardas da época recebiam pelas suas inovações artísticas, que questionavam a sofisticação das linhas estéticas então hegemônicas. Mais do que isso, a peça subliminarmente criticava a percepção, de Diaghilev, de que a elite cultural parisiense julgava a arte russa exótica e primitiva.

Irônico que esse mesmo procedimento do pastiche esteja sendo acolhido sem revisão crítica na montagem da companhia brasileira pouco mais de um século depois.

As escolhas de Colker partem do abandono premeditado (compreensível, em um primeiro momento) da narrativa e argumento originais da peça de Stravinsky, descaracterizando a proposta original e partindo da colagem sinfônica-“antropológica”-eletrônica como procedimento. Contudo, fê-lo sem oferecer nada de interessante ou contemporâneo no lugar.

Bom, contra essa releitura anacrônica e idílica de um Brasil matricial tribal e atemporal, eu tenho uma sugestão para as novas produções vindouras, no sentido de uma tradução brasileira adequada.

Seria mais ou menos assim, aproveitando a região de São Paulo em cujo palco a peça se desenrola: os tribais seriam, nessa versão, os executivos de multinacionais, diretores comerciais, banqueiros, donos de mineradoras e grandes latifundiários, e a entidade a ser sacrificada seria o indígena, o quilombola, o ribeirinho, o trabalhador rural, o periférico, a prostituta, o sem teto, a travesti, o lojista do Iguatemi, o cidadão uberizado e o PJotizado

O valor da “Sagração” não residiria, nesse caso, no intento de acalmar ou agradecer aos deuses, ou mesmo garantir a fertilidade, mas no de celebrar o Deus da pilhagem, da desigualdade e da miséria.

Quem sabe a Vale ou o Santander não apoiam e patrocinam essa ideia, mais adequada e fiel à realidade contemporânea brasileira.

PS: Nada de negativo a declarar sobre o corpo do balé, que é brilhante e excepcional, nem propriamente sobre aspectos estilísticos que são marcantes da companhia; apenas sobre essa semiótica anacrônica e problemática em pleno 2024.

Montagem do centenário de “A Sagração da Primavera”, que buscou ser bastante fiel à obra original. Fonte.

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas