_o Bananal, o Autorama e a construção social do parque Ibirapuera como ± “gay friendly”

_erinhoos
6 min readAug 17, 2017

Ter escolhido pela Antropologia me confere um estranho privilégio. Se você é sabidamente um advogado, uma médica ou um professor de história, seus amigos recorrentemente lhe aporrinharão no WhatsApp com dúvidas sobre brigas com vizinhos, furúnculos ou qualquer preciosismo histórico apócrifo. Como ninguém sabe o que um antropólogo faz — e, ademais, se soubesse, ele seria o último a ser consultado para sanar qualquer questão pragmática — ele se livra das sabatinas bem intencionadas dos amigos.

Daí a fatal recorrência da pergunta mas o que é antropologia?. Normalmente eu respondo que é uma área do conhecimento que se ocupa em analisar coletivos, comportamentos, hábitos etc., a partir de um arcabouço próprio, e que se destaca da sociologia e da história porque: (1) lança mão de trabalho de campo como fonte privilegiada de dados e (2) possui objetos tradicionais de estudo, como populações desfavorecidas e assujeitadas (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, LGBT, mulheres, pessoas “de cor”, refugiados etc.) ou fora do mainstream (rolezeiros, cena heavy metal, “tribos urbanas” etc.) e controvérsias (cracolândia, questão étnico-racial, “cura gay”, patrimônio imaterial etc.). Essa definição não engloba toda a produção antropológica, mas ajuda bem a entender, pelo que percebo.

Uma vez esclarecido o primeiro ponto — o que é —, a segunda pergunta — assombrosa — é quase imediatamente evocada: pra que serve. Ou aquela que eu temo mais: no que você trabalha, [risos nervosos]. Não estou convencido de que existe um consenso na minha rede de antropólogos sobre para que serve a produção na área em que nos formamos. No Brasil a antropologia vem se ancorando há meio século sobre a base comum da produção de um conhecimento situado, denso e crítico acerca da realidade dos mundos que vivemos e que nos rodeiam. Eu pessoalmente acrescentaria aí que, como na filosofia, as etnografias (como são tradicionalmente chamadas as monografias em antropologia) não são meros tijolinhos de conhecimento dentro em um edifício epistemológico, mas uma ferramenta que serve também como recurso para as pessoas revisitarem seus próprios valores como sujeitos comprometidos com o mundo onde vivem.

Como isso vira salário estou tentando entender, porque até poucos meses minha “fonte de renda antropológica” era uma bolsa de pesquisa. Mas sei que há alguma penetração profissional em empresas, ONGs e universidades públicas e privadas. Causa espanto, contudo, ao cabo de todo o esforço empreendido em explicar qual é a minha carreira, fazer entender ainda o fato de eu ter recebido dinheiro “público” por dois anos para auxiliar a condução de uma pesquisa nessa área — e se soubessem que os mestres são ainda menos lidos que os doutores, então… Quando explico minha pesquisa para outras pessoas ainda tenho que lidar com alguma chacota ocasional. Nada que não seja compreensível em um país onde os Direitos Humanos são politicamente “assistidos” por perseguidores de minorias (muitas das quais são de particular interesse para antropólogos).

Mapa do parque Ibirapuera, concernente ao IV Centenário da cidade de São Paulo.

Acabo de ser laureado como mestre em Antropologia Social. Gostaria de dividir de antemão os frutos da minha pesquisa que, espero, será em breve publicada na biblioteca digital de dissertações e teses da UNICAMP. Defino minha etnografia, chamada “UM GRITO CHAMADO SILÊNCIO — UMA ERRÂNCIA ETNOGRÁFICA DA PEGAÇÃO À PRODUÇÃO SOCIAL DOS PARQUES IBIRAPUERAS”, como um experimento etnográfico esboçado a partir de erros-errâncias, isto é, contingências e trajetórias não lineares — aspectos que soam determinantes nas análises antropológicas acerca da produção do sujeito e do espaço.

Meu ponto de partida foi o Bananal, um bosque de preservação ambiental situado dentro do parque Ibirapuera, onde é habitual a presença de homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros, um lugar que conta com uma ambientação feita de trilhas, moitas e árvores, e que ocupa o lugar de uma coxia do espaço público. No meio de suas penumbras, à noite, diversos tipos de interação são engatilhados, sendo que o silêncio, o afeto, o sexo, a luz, a cognoscibilidade operam como tensores a animar as relações (para seguir as intuições do antropólogo Néstor Perlongher). Chamei tudo isso que acabo de descrever, na pesquisa, de pegação, conforme tais procedimentos espacialmente situados são, com efeito, comumente chamados.

Como é habitual em pesquisas etnográficas, o trabalho de campo (que caracterizo como uma modalidade de errância) deslocou minhas preocupações analíticas. Estas, no início da pesquisa, estavam centralizadas na construção de estilos de ocupação do espaço na relação com o erotismo, e passaram a adentrar também o terreno da violação, das moralidades, da visibilidade pública e do pânico moral. Resulta daí que o percurso descrito ao longo da etnografia se comporta como uma linha que, ao ser puxada, evoca uma série de instâncias discursivas produtoras de sentido; o Conselho Gestor do parque, notícias, videorreportagens, relatos orais, entrevistas com militantes e gestores, anais de uma CPI.

Nessa narrativa, apresento primeiramente o cenário, ora visto como palco, ora como coxia, descrevendo as relações de sentido estabelecidas pelos movimentos que lá se flagravam — o que chamei de etnobotânica da pegação. Em seguida descrevo as histórias que assisti e narro as conversas itinerantes, fazendo análises que intersectam erotismo, moralidades, produção do espaço e violência. Em seguida, apresento o Rolezinho, isto é, amplio o quadro de atores e atrizes envolvidos na produção dos espaços nos Ibirapueras. A criação de entidades públicas se torna mais evidente quando me aproximo do empreendimento de uma pequena arqueologia do Autorama a partir de fontes jornalísticas e relatos orais. Trata-se de um estacionamento em cujas madrugadas era possível flagrar intensa e complexa sociabilidade, protagonizada sobretudo pelos chamados “LGBT”. A querela acerca de seu fechamento evoca a presença de diversos atores e atrizes engajados na produção do espaço, moradores e moradoras do bairro vizinho (o Jardim Lusitânia), ambulantes e guardas, menores, jornalistas, vereadores, ativistas etc. O assassinato de um jovem rapaz é uma narrativa que merece destaque, agenciada para definir estratégias de elaboração de um programa de revitalização do estacionamento (o “Autorama Legal”). Ao cabo da etnografia, enfim, esperei ter produzido para o leitor e a leitora um efeito de mapa mental, com diversas temporalidades justapostas, e uma teia complexa em que espaços, ideias e sujeitos se deflagram interrelacionados e mutuamente produzidos.

Destaco como principal ganho da pesquisa a análise das práticas afetivas e sexuais entre homens no parque como concernentes a um campo de negociações complexo, em que espaços, sujeitos, práticas e relações se interproduzem, gerando consensos a partir dos adensamentos em uma intricada malha de atribuições de sentidos. O fato do Ibirapuera ter sido instituído no texto dissertativo não a partir somente da experiência etnográfica no Bananal, mas também desde os vários Bananais e Autoramas evocados em diversas instâncias discursivas, favorece uma análise que entende o espaço não como uma entidade ensimesmada que se retroalimenta continuamente, mas que se produz na relação com os outros espaços e a permeabilidade de atores e atrizes exógenos.

Acredito que a produção de uma pesquisa de tal teor é significativa tendo em vista o contexto vigente das políticas sexuais, do corpo e da diferença, em que antropólogos e etnografias são frequentemente mal interpretados, e em que a produção de conhecimento — sobretudo em ciências humanas — encontra-se fortemente ameaçada, senão comprometida. Nesse mundo, o governador do estado justifica publicamente sem o menor constrangimento o corte de gastos com pesquisas do seguinte modo: “Gastam dinheiro com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade. (…) E a Fapesp quer apoiar projetos de sociologia ou projetos acadêmicos sem nenhuma relevância”. É também nesse regime antiintelectualista e conservador que podemos interpretar o achincalhe público da etnografia do antropólogo Tedson Souza da UFBA por um boçal que teve milhares de visualizações no YouTube, questionando a utilização de dinheiro público para o apoio de um “mestrado em pirocas”. Se estamos falando de dinheiro público e universidade, aliás, existem perguntas muito mais relevantes a serem feitas, como “por que o acesso à infraestrutura pública das grandes universidades se restringe sobremaneira à parcela mais rica da população?”, ou “quando vamos levar a sério os supersalários e a sobre-ocupação de cargos nas universidades públicas?”.

Contra a captura de um saber pluralista, denso e ético sob o rótulo da “ideologia de gênero” e o sucateamento das condições de pesquisa e produção do conhecimento no Brasil, resistimos com nossos gritos e silêncios estratégicos. O orgulho de fazer parte de uma tradição acadêmica (a Antropologia Social da UNICAMP), e circular pelas salas onde há três décadas atrás Néstor Perlongher gestou sua pesquisa sobre prostituição viril, e através das quais o Grupo de Estudos de Gênero Pagu se edificou, este orgulho divido agora com vocês, cumprindo assim o papel que escolhi nesta empreitada, de produzir e difundir conhecimento preciso, responsável e situado.

Agradeço enormemente minha incrível orientadora Isadora Lins França. Minha dissertação sai em breve no repositório público de dissertações e teses da UNICAMP — o autor é Eros Sester.

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas