_erinhoos
7 min readAug 8, 2017

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Já sabemos que a pornografia é um problema, mas que dizer das ciladas do abolicionismo?

Colagem baseada em The Bosom Ballet, performance realizada pela atriz pornô feminista Annie Sprinkle.

Confesso que nunca havia pensado na pornografia como uma questão de saúde pública. Contudo, gostaria de comentar alguns pontos que, na minha opinião, mais atrapalham o debate que ajudam, e algumas premissas epistemológicas que considero equivocadas.

Embora poucas doses de maconha não façam muito mal, a droga vicia e geralmente serve como introdução a outras mais pesadas. Com a pornografia acontece um fenômeno muito análogo, porém pouco conhecido. (…) Com a viciada disfunção hormonal, o corpo da pessoa tende portanto a necessitar de doses cada vez maiores de pornografia. Isto significa que uma mera cena de uma mulher nua passa a não satisfazer mais a pessoa, que passa então a procurar conteúdos sexuais cada vez maiores e mais bizarros. Do erótico passa-se a degenerações sinistras como bestialismo, cornismo, pedofilia, incesto, orgia, necrofilia, estupro e por aí vai.

Acho que muita coisa está misturada aqui. Em primeiro lugar, o coeficiente de viciabilidade da maconha é muito menor do que o de outras drogas, e acomete uma porcentagem muito reduzida dos seus usuários, em proporção. [Fiz uma consulta muito rápida no Google para chegar nisso.] Em segundo lugar, não estou convencido que ela (mais do que o álcool — a droga que mais mata no Brasil — ou a cocaína) “geralmente serve de introdução” a psicoativos mais danosos. Em terceiro lugar, não acredito que esse “chaser effect” se dê de maneira homogênea, generalizada, linear e necessária. Quarto: o ponto de partida do soft porn é uma mulher nua? Engraçado, nos pornôs que eu vejo não há mulheres. Estou vendo os filmes errados? Em quinto lugar, erotismo é socialmente construído. Um pornô normalmente trabalha a partir da erotização de corpos, práticas, relações, objetos. Um corpo morto pode ser erotizado, ele só não é erótico para você. Portanto, a problemática não é o bizarro versus o erótico, e sim, “por que algumas coisas são erotizadas e quais as implicações disso?”. [Ainda em tempo, existe uma tipologia da crítica de arte que trabalha com a ideia de “erotismo” versus “pornografia”. Eu trabalho com o erotismo como um processo, ou seja, de uma perspectiva antropológica.] Por fim, acho curioso você colocar “cornismo” e “orgia” ao lado de “estupro” e também de “bestialismo”, “pedofilia” e “necrofilia”. Creio que não existe uma linearidade unívoca entre compulsão por pornografia e acesso a conteúdo supostamente mais “degenerativo”. Ademais, o que você chama de degenerescência aqui engloba práticas que envolvem consentimento (“cornismo”, “orgia”), simulam a falta de consentimento (“estupro”)[1] e que definitivamente não o envolvem (“bestialismo”, “pedofilia” e “necrofilia”). Vejo aqui um forte ranço moral e pouco sensível em relação à diversidade acerca dos desejos e suas potencialidades.

[1] Um fato é: como a própria Shelley Luben comenta no texto que você mesmo cita, é difícil definir o grau de consentimento que envolve o trabalho das atrizes pornô em um mundo profissional marcado pela precarização e más condições de trabalho (vulnerabilidade em relação ao sexo, propensão ao vício químico etc.). O fato é que o tema do “estupro” se desdobra em dois: a maior ou menor margem de agência das atrizes nas narrativas pornôs, e a narrativa mesma do “estupro” como uma linguagem no pornô baseada na retórica da violação, ainda que consentida pela atriz.

Na pornografia, obtemos “sexo” sem o trabalho de namoro. (…) Outro ponto interessante é que os pesquisadores relataram que 60% dos indivíduos — em idade média de 25 anos — tiveram dificuldade em obter ereções e/ou excitação com parceiros reais, mas ainda assim conseguiram ereções com pornografia.

Concordo que o dado é estarrecedor, e que ele coloca em evidência a ratificação de uma cultura sexual baseada em padrões representacionais cuja reiteração e erotização soterra o desejo pelas pessoas convencionais e pode estar associada a um certo desencanto pelo toque. Mas não acredito que o sexo-sem-o-pornô necessariamente deveria estar vinculado a um “trabalho” de namoro. Cruzes!

Fora os problemas psicológicos de dependência que a pornografia gera, pode-se também destacar suas consequências negativas para o convívio social, a cultura e a atividade sexual, bem como a procriação.

Estamos falando de compulsão. Acho que nem todos os consumidores de pornografia são compulsivos, mas acredito que realmente a generalidade, acessibilidade e onipresença dos padrões corporais e eróticos mainstream dentro e fora do pornô de fato é capaz de gerar toda sorte de incongruências. Sobre a “procriação”… Não vejo o menor problema em um mundo com menos pessoas, porque não coaduno de uma visão utilitarista e tradicional de sociedade. Cada vez mais assistimos à generalização de técnicas de reprodução que prescindem de intercursos sexuais, e felizmente o mundo nem é tão mais hétero — pelo menos o meu. O problema, a meu ver, não é a diminuição da demografia em si, mas a razão pela qual ela pode diminuir, e aí eu concordo que os dados sobre o caso japonês são elucidativos, preocupantes e— se me permite o trocadilho — pornográficos.

“E então surge a possibilidade com a sua esposa ou parceira, e você não é mais capaz de fazê-lo” ele diz.

Às vezes isso pode ser libertador (risos).

Com o consumo de pornografia, a pessoa se torna vítima de uma realidade virtual, que falsifica as relações interpessoais, e sua capacidade de interação, principalmente com pessoas do sexo oposto, fica prejudicada. As situações totalmente bizarras e surreais da pornografia criam expectativas totalmente equivocadas sobre como deve ser a interação entre os sexos.

Acho que todos nós possuímos uma visão mais ou menos crítica acerca dos produtos audiovisuais que consumimos, não agimos passivamente diante das coisas que assistimos. Prefiro pensar nos efeitos das representações hegemônicas do que achar que somos meras vítimas. Também discordo que os prejuízos na “capacidade de interação” se dariam “principalmente com pessoas do sexo oposto”. Há duas ou três semanas publiquei aqui no Medium um texto que falava sobre solidão, no qual eu, dentre outras coisas, problematizava justamente o pornô gay e a erotização de corpos quase utópicos. Por fim, às vezes a própria realidade é “bizarra e surreal”, e não acredito que o pornô é o único criador de expectativas, nem é um produtor isolado de “equívocos”.

Se você preza pela sua família e, de modo geral, pela salubridade civilizacional, então deve desde já a ensinar seus filhos a ter uma postura contra a pornografia e suas influências na sociedade, pois como em qualquer problema comportamental, sua solução começa em casa.

Me parece muito moralista colocar o problema da pornografia como se fosse da ordem de uma “salubridade civilizacional” — aliás, gostei muito desse termo, haha. Como um artefato cultural, não acredito que seja contra a representação pornográfica que devemos nos mobilizar, afim de “proteger as criancinhas” do perigoso e malvado bicho-papão do pornô — lembrando que muitas pessoas não têm filhos e não pretendem tê-los. Acho que, em lugar de nos prevenirmos desse algo que se impõe sólida e preocupantemente sobre a vida dos homens e mulheres da nossa geração, podemos pensar em perguntas como “o que fazer com o consumo e a produção de toda essa pornografia?”.

Ademais, os estudos que você cita, relacionados à neurologia, saúde pública e demografia, estão longe de compor a única perspectiva a ser considerada em um debate sério sobre pornografia e opressão.

Lucas Machado há alguns meses publicou nesta mesma plataforma um texto que discute o pornô de um ponto de vista mais sociológico. Nesse texto, como no seu, o pornô também é apontado a partir das disrupções com a realidade das práticas sexuais entre pessoas que não estão encaixotadas no 2D do XVideos, e o universo dantesco e quimérico dos pornôs. O autor aponta o paradoxo entre a ausência de orientação educacional sobre práticas sexuais no ensino básico, e o amplo e cada vez mais generalizado acesso das pornografias como formas de pedagogia sexual para populações jovens — frequentemente uma “porta de entrada” para o sexo.

Um argumento apresentado em ambos os textos é a ideia de que a pornografia reflete um expediente político e aspectos sócio-demográficos extremamente danosos, seja na configuração da pornografia como um vício esquizofrênico e perigoso, capaz de impactar sobre a vida íntima de grandes contingentes urbanos (como você deixou claro), seja pela formação de uma mentalidade erótica assimétrica em relação aos gêneros, marcada pela erotização de práticas e corpos específicos, e por uma semântica baseada na violação como retórica caricatural do assujeitamento de gênero (o violador irrefreado, masturbação feminina etc.) — o ponto do segundo texto.

Em um esfera mais propositiva temos, por um lado, o abolicionismo conservador, pautado em argumentos como os desenvolvidos pelo seu ensaio, que apelam a convenções tradicionais (“namoro”, “filhos”, “procriação”) com o intuito de proteger a imaculada “salubridade civilizacional”. Por outro, um contraponto oferecido por uma leitura crítica e feminista (falo de certos feminismos) sobre a pornografia, que caminha no sentido de um flerte com o abolicionismo radical, que eu considero empoderador por um lado, mas igualmente problemático por outro — pois alinha qualquer tipo de produção pornográfica ao patriarcado, sem levar em consideração a possibilidade de tomada de consciência sobre as representações e (o que considero mais interessante) o agenciamento das próprias mulheres sobre a produção do pornô (pós-pornô, pornô feminista etc.). [Aliás, o próprio Lucas Machado está ciente das diferentes abordagens, preferindo não aderir a nenhuma delas.]

Concordo que este é um debate espinhoso que, como sugere Lucas Machado em seu texto, concerne sobretudo às mulheres e solicita suas vozes. Meu interesse ao comentar tão bem escrito, dedicado e lido texto — aqui no Medium — é oferecer um contraponto que considero importante à sua abordagem, sobretudo porque aposto sempre que o dissenso é o melhor caminho para a construção de um debate público de qualidade.

O pornô é um problema, e nisso concordamos. Minhas questões são: qual será a melhor abordagem para tratarmos desse tema, e o que fazemos, portanto, com esse problema.

[Afim de ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre esse assunto!]

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Written by _erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas

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