_desfazendo mitos sobre prostituição masculina

_erinhoos
9 min readJul 6, 2017

Renan trabalha como profissional do sexo ou acompanhante há pelo menos dois anos em São Paulo, e concordou em dar essa entrevista desde que algumas informações a seu respeito se mantivessem em sigilo. No processo de elaboração desta entrevista, revisei uma série de preconceitos, levando vários baldes de água gelada. Entrevistar o Renan foi um exercício de deslocamento radical do meu lugar de conforto. Espero que seja para vocês também.

É um prazer tê-lo aqui.

Olha, só sei que da última vez que vieram me entrevistar apareceram com um monte de perguntas bosta. Achei que o mais importante não era responder às perguntas, mas questionar os fundamentos por detrás das mesmas, o que deixou o menino, um estudante de jornalismo, meio irritado… Muitas dessas perguntas trazem suposições violentas, e talvez eu tenha que apontá-las ao longo desta conversa.

Me perdoa então se eu fizer alguma pergunta muito constrangedora.

Tamo junto.

Quem é Renan?

Um cara de 23 anos, gostoso, sexy e esperto, carinhoso quando precisa, estúpido quando pedem, um dos mais preparados para o mercado. [Risos] Atributos físicos podem ser acessados no meu portfólio.

E quem são os seus clientes?

Quem? Acho mais fácil você descobrir quem são os informantes do Lauro Jardim, porque não posso literalmente dizer quem são meus clientes. Mas posso dizer que vários deles se parecem muito com você.

Em que sentido?

Uma parte razoável deles, muito mais do que se imagina, é de pessoas jovens, que de um modo ou de outro têm questões profundas com a auto-estima.

Você ajuda essas pessoas? Com a auto-estima delas?

Não sei. A bebida ajuda? Talvez sim, talvez não.

Você está se comparando a uma droga.

Às vezes sou comparado. O que não é um problema, desde que você tenha consciência da hora de parar de vender seus serviços a alguém, o que é algo relacionado à consciência ética. O cliente que se apaixona é quase um mito, mas já aconteceu comigo. E você tem que ser forte para não querer se beneficiar da fragilidade do outro. Mas você me perguntou sobre o meu público, né? Olha… Na média entre vinte e quarenta e cinco [anos], ou seja, a década e meia em que a testosterona tá gritando na gente. Sou contratado por motivos muito diversos, bem diferente dos clichês. As pessoas assistiram Bruna Surfistinha e acham que sabem de tudo. Basicamente, meus clientes querem, de maneira mais ou menos controlada, ter algo afetivo e/ou sexual comigo. Posso citar muitos motivos. Eles podem simplesmente querer se sentir desejados, e isso tem a ver com a auto-estima e a rejeição sobre o próprio corpo. Detalhe: eles querem se sentir desejados muitas vezes justamente por pessoas que possuem o meu corpo, que é branco, atlético, e a minha postura, que é masculina. Outras pessoas me contratam porque são muito tímidas. Ou então porque simplesmente não sabem xavecar, não aprenderam a fazer isso. Outras trabalham demais, e não têm tempo para flertar. Assim, preferem fazer como no trabalho, ou seja, programar na agenda certinho. Tem aqueles homens que são extremamente solitários, e realmente usam o dinheiro para serem ouvidos, e o sexo como pretexto para um abraço, ainda que o afeto seja simulado. Tem muita gente curiosa. Muitos gays que querem transar com homens “de verdade”, ou seja, “héteros”. Gente que está sob estímulo de álcool e entorpecentes e quer maximizar o prazer, ou se permitir a fazer algo que jamais fariam sóbrios. Tem aqueles homens que são casados, seja com mulheres, seja com outros homens, e que pagam pelo sigilo. E também tem aquelas pessoas que só podem experimentar certas coisas na cama pagando, seja uma relação extraconjugal com uma pessoa do mesmo sexo, seja fetiches, dominação, sexo de boa qualidade [risos], podolatria, cócegas etc. etc. etc. E existem infinitas combinações dentro desse leque de motivações. No fim, ninguém precisa pagar pra ter relações sexuais. Mas as pessoas pagam pra mim porque querem acessar coisas, sensações, prazeres, que, sem o dinheiro, não teriam condições.

Seus clientes são sempre homens, então?

Quase na totalidade. Casais eventualmente.

Entendi. E com o que você ganha dá pra sobreviver bem?

Estou aqui, né? Pareço estar mal? [Risos] Talvez “sobreviva” com mais estabilidade que muito jornalista aí… Aliás, não entendi por que a pergunta fala de “sobrevivência” e não simplesmente “viver”. Acho que uma coisa muito importante a ser lembrada é que o dinheiro está no meio, aliás, o dinheiro atravessa o nosso mundo em todas as relações. As afetivas, inclusive, profundamente. Que relação de qualquer tipo existe fora de uma série de referenciais monetários? Era o Bauman que falava da intrusão dessa retórica do consumo dentro das relações amorosas. Eu não sei se o amor existe, mas entre os corpos e os desejos certamente o dinheiro está. Não é à toa que quem quer me levar pra cama está consumindo um bem supérfluo. Também não é à toa que sair comigo é um signo de prestígio… Assim como não é gratuito que as pessoas tratem seus parceiros como posses, mesmo quando não estão se prostituindo. Aliás, a prostituição faz algo muito verdadeiro nisso tudo, que é assumir o dinheiro. Tem até uma estranha vantagem: o dinheiro é explícito e controlado.

Existe alguma organização de garotos de programa, tais como já existem para mulheres cis e trans?

Não, e isso se deve não só ao preconceito e ao estigma, mas à aversão a qualquer organização política e econômica pelos próprios garotos de programa. Essa acefalia está enraizada num reacionarismo muito peculiar. Os garotos de programa de classe média criam sua reputação às custas de índices de privilégio, tais como gênero, silhueta, postura. Na cama, comigo pelo menos, o machão da Vila Olímpia que maltrata a travesti às vezes pode ser o mesmo cara que pede pra eu cuspir nele e chamar de “putinha”. Então invertemos, nós, os de classe média, masculinos, a armação que acomete nossas irmãs trans, cis e femininas. Ganhamos por sermos privilegiados, e não o contrário. Pelo menos isso também é explícito. Nesse sentido, não parece conveniente para os acompanhantes se associarem politicamente, pois eles trariam à baila uma série de dados que deporia contra eles mesmos. Ser público não é necessário para o lucro, e tampouco é sexy. Agora, fico irritado com a falta de ímpeto empreendedor de muitos dos meus colegas, pois acredito em cooperativas — jamais na regulamentação estatal. Mas os limites borrados entre amizade e trabalho atrapalham, não só porque clientes buscam lograr vantagens sobre nossa condição de precariado, mas também porque garotos não se preparam para o pensamento empresarial. Acompanhante sempre é uma profissão liminar. Mas eles têm que entender que existem outras profissões análogas, como a de modelo, e que, mesmo quando tentamos evitar uma reputação estigmatizada, é importante não sermos ludibriados e otimizar nossos ganhos.

Você falou agora bastante sobre a labuta. O que dizer do prazer na prostituição?

Essa é uma pergunta capciosa. Como qualquer trabalho, é possível sentir tesão, fruir de um modo ou de outro. As condições de trabalho é que definem de que se goza mais ou menos — com o perdão do trocadilho. Eu torço para que o trabalho seja prazeroso, não porque eu seja compulsivo ou vagabundo, mas porque qualquer trabalho é melhor quando é prazeroso. Preferia ganhar dinheiro com coisas mais edificantes, ou transformar meu trabalho em algo assim. Enquanto isso não acontecer, não vou me culpar. Mas a pergunta sobre prazer e fingimento é uma falsa pergunta. No trabalho formal nós fingimos prazer ou de fato sentimos prazer, nós temos tensão sexual por colegas etc. Assim como muita gente por aí finge estar gostando do sexo conjugal e sai bonito na foto do álbum de casamento ou nas bodas de ouro. No fundo, muita gente tem sexo de verdade comigo porque está fingindo na cama com a namorada ou o esposo. Estou cansado dessas perguntas. Só falta você perguntar se eu beijo. [Risos]

Vou tentar melhorar. [Risos] Tem algumas aqui que eu tô até reescrevendo enquanto ouço suas respostas. E o que dizer sobre como tudo isso, o prazer e a falta de prazer impactam a sua vida pessoal, íntima…

Lembrando que todo trabalho de certo modo impacta a vida pessoal de qualquer pessoa.

Você é um militante da ideia de que a prostituição é um trabalho, então.

Pareceu? [risos] Olha, acho que existe um caminho para pensar na dignidade das pessoas que estão mantendo relações sexuais em troca de dinheiro, e esse caminho é o da ética profissional. Mas você me perguntou sobre vida íntima. Ontem estava pensando algo, que é o seguinte… Quanto mais eu transo com outros, menos encontro o Outro no sexo, e mais eu transo comigo mesmo. Eu sou a pessoa por quem mais me atraio no sexo, eu tenho a pegada interessante, eu sou o cara que me excita no espelho de teto da suíte do motel. Quanto mais transo menos eu estou “aqui”, na contramão do que fala o Foucault [no texto O corpo utópico]. Isso porque o sexo deixa de ser um espaço de reconciliação com o corpo para ser outro espaço, ou um anti-espaço, uma máquina de supressão do tempo, como quando eu estou na academia. O sexo criativo é um momento especial, guardado para uma ou outra pessoa, com café da manhã. O melhor sexo passa a não ter sexo. O prazer fica mais interessante quanto menos está territorializado no script clichê.

Você tem algo curioso pra contar? Sei que essa pergunta é bastante clichê, mas podemos tentar sair do óbvio.

Sabe o que eu realmente acho estarrecedor na coisa dos programas? É que as pessoas pagam menos para ter sexo do que para se sentirem desejadas. Não me espanta alguém pedir pra eu fazer algo inusitado na cama. Me espanta as pessoas se descobrirem objetos de desejo, e se surpreenderem com isso. Elas não querem só prazer, elas pagam por dignidade. Isso que é realmente sinistro. Outra coisa muito curiosa! Passei e me irritar quando as pessoas me pedem dinheiro. [Risos] Eu não sou o Papai Noel, eu como o Papai Noel, e tem muita gente que não está disposta a fazer o que eu faço — só a criticar. Então eu tenho muito apego ao dinheiro que eu faço desse jeito, e orgulho também. E às pessoas que criticam meu estilo de vida, eu convido pra ir lá fazer ponto, encarar uma série de perguntas de cunho íntimo, de autorreflexões, pra depois vir falar comigo ou me pedir dinheiro. Porque a dor maior não é a infecção urinária, não é o desinteresse pelo sexo, e o contato com o corpo inatraente dos clientes, mas sim [a dor de] se confrontar com uma série de perguntas pessoais, se desencantar com tudo aquilo que está muito arraigado e próximo, estranhar as relações interpessoais como [as] estranhamos quando fazemos antropologia ou teatro… Acho que o estigma social dos outros é muito menor do que o nosso próprio estigma social, aquele trancado bem no fundo de nós mesmos. E não é fácil mexer nisso aí não.

Percebo que você é escolarizado, ou teve bastante acesso a informação. Citou Bauman, Foucault, antropologia… Você não parece compor o perfil médio dos garotos de programa.

Mas você está perfeitamente dentro do perfil médio dos jornalistas. Desinformado.

Felizmente sou antropólogo. [Risos]

Quer que eu comente o que você disse? Acho que já estou problematizando um monte de preconceitos, como o de que trabalhadores do sexo são todos boçais. Muitos são, de fato, mas as pessoas no geral nunca são apenas boçais. Sobre mim, cada um tem seus próprios segredos. E eu lido o tempo todo com segredos, os meus e os dos outros. Tem uma pergunta muito irritante que me fazem com frequência, que é “qual é o meu nome de verdade”. É irritante em muitos níveis, porque o meu nome de guerra é ao mesmo um protocolo profissional e minha salvaguarda. Ele compõe a persona do acompanhante como o artista tem um nome artístico para compor a sua própria persona. É também uma medida de segurança do trabalho. Quando um cliente pergunta meu suposto nome “de verdade”, então, não é simétrico. Eles querem garantir que eu não tenha o menor acesso a informações que os tornem vulneráveis — eu tampouco desejo sabê-las. Mas fazem questão de perguntar. Então eu respondo “pra você é Renan”, e encerro o assunto.

E pra mim, você é quem?

Renan certo? Sou eu que você quer entrevistar, não?

Certo. E por que não cobrou pra estar aqui?

Essa é uma boa pergunta, pois eu poderia tranquilamente cobrar se quisesse. Esse é um aprendizado que só eu detenho. Inclusive, cheguei a ele fazendo aquilo que as pessoas acham que é fácil mas não se dispõe a fazer, que é transar com pessoas por quem não se sentem a princípio atraídas. Só aceitei dar essa entrevista porque respeito o trampo de vocês jornalistas.

Mas eu sou antropólogo.

Mas você não está sendo antropológico aqui.

Uma vez antropólogo, sempre antropólogo. [Risos] Muito obrigado pela presença, Renan!

Espera, quero fazer uma pergunta.

[Risos] Tudo bem.

Você tem uma tatuagem igual à minha. [Refere-se à tatuagem no meu dedo médio direito, onde se lê “Renan”] O que ela significa pra você?

Pois é, cada um tem seus próprios segredos…

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas