A Caixa, de Gaê

Uma dramaturgia (des)encaixotável.

_erinhoos
3 min readOct 4, 2023
Uma imagem da capa do livro.

A Caixa é um convite a (des)embalar-se.

Gaê nos leva, no passo de uma odisseia microscópica cuja matéria-prima é a alegoria, para uma revisão-investigação de masculinidades possíveis — e, talvez, das não tão possíveis assim.

Essa epopeia dos devires masculinos se desenreda através — por dentro e por fora — da caixa que somos nós. A caixa que é do Menino, mas que é também, de certo modo, de todos — ou, ao menos, de muitos.

Chama a atenção a sensibilidade antropológica do dramaturgo, ao coletar e escrutinar sobre uma série de binaridades implícitas e explícitas que acompanha esse lento assassínio. A morte do Menino é uma morte por binaridade.

(Re)aprendemos, ao longo da peça, que, de acordo com o binarismo hegemônico de gênero, espera-se que o Homem exerça a sua propriedade de explorador, descobridor, aquele-que-nomeia; o exercício de uma masculinidade que conquista a Terra (feminina), que desbrava a nudez (da Irmã), que esquadrinha o espaço sideral em busca de novos planetas.

A família, destino (e sinônimo) do planeta perfeito, é enquadrada no processo de re-encaixotamento contínuo, que se radicaliza à medida que os arcos narrativos evoluem. No entanto, o autor não ousa transfigurar sua caixa em Armário, sujeito frequentemente implícito na arquitetura das hipocrisias familiares. Antes, Gaê nos apresenta uma caixa de Geladeira, como se subliminarmente prefigurasse, para o Menino, a frivolidade incansável que é destino esperado de qualquer Homem. (Como se também vaticinasse o gélido corpo de um Menino-“encaixãotado”.)

Há de se atentar também para um certo gênero de monólogo comentado, ora pela Mãe, ora pelo Ator-ele-mesmo. (Que, por que não, é também um comentário do ator que Gaê também é.)

As diretivas cênicas são frequentemente de um lirismo pretensioso, como se o texto insistisse em dirigir — e dirigir à base de metáforas e alegorias: “Dentro do caixão há um menino, e à beira de qualquer caixão com um menino dentro, há de haver uma mãe”.

Diferentes versões deste Menino-Caixa apresentam tratos, visões de mundo, linguagens e processos de socialização distintos com relação ao Outro. Um exemplo: as personagens que encarnam desvios e errâncias além-Homem, enunciadas de forma degradante pelo Apresentador, assinalam a inominabilidade do que não é espelho; o “veadinho” sem nome, a “gostosinha” sem nome.

O grande emblema da farsa, no entanto, é o actante que carrega seu título, a co-protagonista nem um pouco discreta: a Caixa-ela-mesma. A caixa-caixinha para enterrar o Avô, a caixa-caixão para enterrar o Menino. (Uma caixa que é cíclica, como uma máquina de encaixotar homens através de gerações.)

“Não se enganem! A caixa dos homens, ela não foi feita para nós. Que nós, homens, também somos gente — e gente não é coisa de se guardar em caixa — até que seja… (…) Veremos a seguir o enterro do menino. Esse menino que morreu na caixa que lhe fizeram ao nascer. Seu berço nada mais era que caixão ainda sem a tampa”.

No mais cru dos arcos narrativos, essa caixa é abandonada pela força cênica humana, para, em uma atribuição ontológica construída pelos demais arcos e sustentada narrativamente pela Mãe, restar signo, nu, na mais amarga tez da sua polissemia.

Ironias à parte, o elemento rotulador, enrijecido, monolítico é também, em última análise, o germe de sua própria desconstrução. Vista a contrapelo, resta retomar a caixa em sua plasticidade, remontável, passível de encarnar todos os cenários possíveis de uma masculinidade que se quer autônoma e emancipada.

A Caixa é um convite para esse (des)embalar-se. Bem vindos à Caixa.

Gaê (pessoa na foto) é o autor de “A Caixa”. Pré-venda aqui.

Ficou interessada ou interessado em ler a dramaturgia? A pré-venda de “A Caixa” já está rolando neste link. Recomendo a leitura.

Capa do livro “A Caixa”.

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_erinhoos

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas